Terminei de ler recentemente a obra de Javier Cercas intitulada Soldados de Salamina. Devo dizer que foi um das mais prazerosas leituras que fiz nos últimos dois ou três anos. Você simplesmente quer ir adiante na leitura.
Cercas escreve de maneira inteligente e cativante. O texto tem um viés humano muito forte por narrarda tarefa de um personagem de resgatar a memória de um evento ocorrido sessenta anos antes, durante os últimos dias da Guerra Civil espanhola (1936-1939).
A tentativa de entender este episódio marginal na luta civil espanhola leva Cercas a buscar documentos e pessoas. Sua busca é a de reconstruir aquele momento pela narrativa dos participantes e documentos de época.
O que permitiu a um viver e, a o outro, perdoar ?
Tarefa nada fácil pois o único relato escrito fragmentado sobre o evento é o do escritor falangista. Não há como (re)construir a história com a versão de apenas um dos personagens. Os relatos orais das poucas pessoas vivas que participaram, ainda que indiretamente, daquele episódio e os poucos documentos sobre a vida de Sánchez Mazas encontrados trazem novas indagações e dúvidas: Em primeiro lugar, os documentos são incompletos e falam de outros momentos da vida de Mazas. Por outro lado, as falas das pessoas que conheceram o poeta falangista no contexto pesquisado são contraditórias em muitos pontos. Diferentes relatos jogam ênfases distintas em momentos discordantes do episódio e, além disso, como os documentos escritos, são fragmentados.
Do mesmo modo, ao ouvir o relato dos indivíduos sobre aquele episódio, Cercas percebe que tem que levar em consideração que o narrador pode ter esquecido ou omitido algo propositadamente.
As pessoas rememoram o que desejam. Esquecem o que lhes é inconveniente. Deste modo, a memória sempre é seletiva, ela joga luz sobre alguns fatos, distorce outros e esquece uns tantos.
Como, então, reconstruir o que realmente aconteceu a partir da noção particular de cada um sobre o evento ? É possível ?
O que Cercas percebe é que rememorar um fato implica por parte do investigador um posicionamento ativo, não neutro, de selecionar e eleger o que pode ou provavelmente é verdade, de um lado, e o que são leituras parciais, distorcidas ou omissões, de outro.
Além disso, como somente duas pessoas participaram da cena descrita pelo escritor falangista (ele próprio e o soldado republicano) e a versão de um deles (no caso, a do soldado) não é mais possível ser reconhecida, não há maneira de se obter o sentido último do ato. Ele está perdido para sempre, só se pode tentar reconstruí-lo sabendo-se, de antemão, que a peça final que completaria o quebra-cabeças não será nunca conhecida.
Cercas pensa em desistir da busca, mas o encorajamento por parte de sua namorada (uma pessoa em tudo diferente dele) e de um escritor chileno que ele conhece mais tarde fazem com que ele retorne ao projeto.
A partir daí um outro personagem, muito interessante, entra na narrativa: um ex-combatente catalão que tomou parte na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial. E com ele que Cercas buscará mais uma vez obter o sentido final do episódio descrito na narrativa de Sánchez Mazas.
Confesso que a parte final do livro, a conversa entre Cercas e este combatente (cujo nome era Antonio Miralles) é de uma sensibilidade e riqueza que a torna a parte mais interessante da obra (bom, pelo menos para mim).
É curioso perceber também a trajetória de Sánchez Mazas após a vitória das forças que se opunham à república. Ele experimenta rapidamente o desencanto com a política e a vida pública. Enquanto lutavam contra comunistas, socialistas e anarquistas os slogans e bandeiras da Falange eram de serventia. Após a queda dos republicanos os principais membros da Falange foram alçados aos altos cargos do novo regime, mas sem poder efetivo. Sánchez Mazas mesmo foi ministro de Estado por algum tempo, até perceber que os ideais que levaram sua organização a lutar ao lado de Franco foram postos de lado em prol de um governo puramente pessoal e autoritário. Mazas é removido do cargo poucos meses após a vitória. Por esta época já abandonara completamente a vida pública. Viveu mais alguns anos como escritor, mas nunca mais teve a projeção de outrora. Pouco tempo após sua morte sua obra foi esquecida.
O livro ainda traz os problemas pessoais e existências vividos por Cercas e Sánchez Mazas. Creio que Cercas quis demonstrar, e o fez com competência, que por detrás daquelas páginas magnificamente escritas, tanto o autor do livro, como o poeta falangista instigador da narrativa, são pessoas de carne e osso, com problemas em tudo parecido com os nossos (desencanto, insatisfação, perfeccionismo e mesmo falta de dinheiro em alguns momentos).
Sei que há um filme baseado no livro. Cercas mesmo foi convidado a ler o roteiro e aprovar algumas modificações. Confesso que, após ler o livro, ainda não me decidi em ver o filme, mas acho que o farei um dia).
Cercas escreve de maneira inteligente e cativante. O texto tem um viés humano muito forte por narrarda tarefa de um personagem de resgatar a memória de um evento ocorrido sessenta anos antes, durante os últimos dias da Guerra Civil espanhola (1936-1939).
O escritor/jornalista responsável por fazê-lo, o próprio autor, mergulha na busca do sentido de um episódio efêmero daquele momento histórico: o motivo elo qual um soldado republicano permitiu que um inimigo seu continuasse vivo após tê-lo sob a mira de sua arma ? O mais inquietante é que o prisioneiro não era alguém de menor importância, mas sim Rafael Sánchez Mazas, um dos fundadores e mais proeminentes ideólogos da Falange Espanhola, organização política conservadora adepta da derrubada da república.
A tentativa de entender este episódio marginal na luta civil espanhola leva Cercas a buscar documentos e pessoas. Sua busca é a de reconstruir aquele momento pela narrativa dos participantes e documentos de época.
O que permitiu a um viver e, a o outro, perdoar ?
Tarefa nada fácil pois o único relato escrito fragmentado sobre o evento é o do escritor falangista. Não há como (re)construir a história com a versão de apenas um dos personagens. Os relatos orais das poucas pessoas vivas que participaram, ainda que indiretamente, daquele episódio e os poucos documentos sobre a vida de Sánchez Mazas encontrados trazem novas indagações e dúvidas: Em primeiro lugar, os documentos são incompletos e falam de outros momentos da vida de Mazas. Por outro lado, as falas das pessoas que conheceram o poeta falangista no contexto pesquisado são contraditórias em muitos pontos. Diferentes relatos jogam ênfases distintas em momentos discordantes do episódio e, além disso, como os documentos escritos, são fragmentados.
Do mesmo modo, ao ouvir o relato dos indivíduos sobre aquele episódio, Cercas percebe que tem que levar em consideração que o narrador pode ter esquecido ou omitido algo propositadamente.
As pessoas rememoram o que desejam. Esquecem o que lhes é inconveniente. Deste modo, a memória sempre é seletiva, ela joga luz sobre alguns fatos, distorce outros e esquece uns tantos.
Como, então, reconstruir o que realmente aconteceu a partir da noção particular de cada um sobre o evento ? É possível ?
O que Cercas percebe é que rememorar um fato implica por parte do investigador um posicionamento ativo, não neutro, de selecionar e eleger o que pode ou provavelmente é verdade, de um lado, e o que são leituras parciais, distorcidas ou omissões, de outro.
Além disso, como somente duas pessoas participaram da cena descrita pelo escritor falangista (ele próprio e o soldado republicano) e a versão de um deles (no caso, a do soldado) não é mais possível ser reconhecida, não há maneira de se obter o sentido último do ato. Ele está perdido para sempre, só se pode tentar reconstruí-lo sabendo-se, de antemão, que a peça final que completaria o quebra-cabeças não será nunca conhecida.
Cercas pensa em desistir da busca, mas o encorajamento por parte de sua namorada (uma pessoa em tudo diferente dele) e de um escritor chileno que ele conhece mais tarde fazem com que ele retorne ao projeto.
A partir daí um outro personagem, muito interessante, entra na narrativa: um ex-combatente catalão que tomou parte na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial. E com ele que Cercas buscará mais uma vez obter o sentido final do episódio descrito na narrativa de Sánchez Mazas.
Confesso que a parte final do livro, a conversa entre Cercas e este combatente (cujo nome era Antonio Miralles) é de uma sensibilidade e riqueza que a torna a parte mais interessante da obra (bom, pelo menos para mim).
É curioso perceber também a trajetória de Sánchez Mazas após a vitória das forças que se opunham à república. Ele experimenta rapidamente o desencanto com a política e a vida pública. Enquanto lutavam contra comunistas, socialistas e anarquistas os slogans e bandeiras da Falange eram de serventia. Após a queda dos republicanos os principais membros da Falange foram alçados aos altos cargos do novo regime, mas sem poder efetivo. Sánchez Mazas mesmo foi ministro de Estado por algum tempo, até perceber que os ideais que levaram sua organização a lutar ao lado de Franco foram postos de lado em prol de um governo puramente pessoal e autoritário. Mazas é removido do cargo poucos meses após a vitória. Por esta época já abandonara completamente a vida pública. Viveu mais alguns anos como escritor, mas nunca mais teve a projeção de outrora. Pouco tempo após sua morte sua obra foi esquecida.
O livro ainda traz os problemas pessoais e existências vividos por Cercas e Sánchez Mazas. Creio que Cercas quis demonstrar, e o fez com competência, que por detrás daquelas páginas magnificamente escritas, tanto o autor do livro, como o poeta falangista instigador da narrativa, são pessoas de carne e osso, com problemas em tudo parecido com os nossos (desencanto, insatisfação, perfeccionismo e mesmo falta de dinheiro em alguns momentos).
Sei que há um filme baseado no livro. Cercas mesmo foi convidado a ler o roteiro e aprovar algumas modificações. Confesso que, após ler o livro, ainda não me decidi em ver o filme, mas acho que o farei um dia).