Benvindos!

A idéia de criar este espaço surgiu aos poucos. Nasceu da necessidade de expandir o grupo de pessoas com as quais me correspondo ou com as quais converso sobre temas de interesse em comum. Desejo que seja um lugar de troca de idéias e informações, mas , sobretudo, de boa conversa, democrática e sem preconceitos. Mais uma vez, benvindos.



quarta-feira, 26 de junho de 2013

Soldados de Salamina

Terminei de ler recentemente a obra de Javier Cercas intitulada Soldados de Salamina. Devo dizer que foi um das mais prazerosas leituras que fiz  nos últimos dois ou três anos. Você simplesmente quer ir adiante na leitura.

Cercas escreve de maneira inteligente e cativante. O texto tem um viés humano muito forte por narrarda tarefa de um personagem de resgatar a memória de um evento ocorrido sessenta anos antes, durante os últimos dias da Guerra Civil espanhola (1936-1939).


O escritor/jornalista responsável por fazê-lo, o próprio autor,  mergulha na busca do sentido de um  episódio efêmero daquele momento histórico: o motivo elo qual um soldado republicano permitiu  que um inimigo seu  continuasse vivo após tê-lo sob a mira de sua arma ? O mais inquietante é que o prisioneiro não era alguém  de menor importância, mas sim Rafael Sánchez Mazas, um dos fundadores e mais proeminentes ideólogos da Falange Espanhola, organização política conservadora adepta da derrubada da  república.

A tentativa de entender este episódio marginal na luta civil espanhola leva Cercas a buscar documentos e pessoas. Sua busca é a de reconstruir aquele momento pela narrativa dos participantes e documentos de época.
O que permitiu a um viver e, a o outro, perdoar ?

Tarefa nada fácil pois o único relato escrito fragmentado sobre o evento é o do escritor falangista. Não há como (re)construir a história com a versão de apenas um dos personagens. Os relatos orais das poucas  pessoas vivas que participaram, ainda que indiretamente, daquele episódio e os poucos documentos sobre a vida de Sánchez Mazas encontrados trazem novas indagações e dúvidas: Em primeiro lugar, os documentos são incompletos e falam de outros momentos da vida de Mazas. Por outro lado, as falas das pessoas que conheceram o poeta falangista no contexto pesquisado são contraditórias em muitos pontos.   Diferentes relatos jogam ênfases distintas em momentos discordantes do episódio e, além disso,  como os documentos escritos, são fragmentados.
Do mesmo modo, ao ouvir o relato dos indivíduos sobre aquele episódio, Cercas percebe que tem que levar em consideração que o narrador pode ter esquecido ou omitido algo propositadamente.
As pessoas rememoram o que desejam. Esquecem o que lhes é inconveniente. Deste modo, a memória sempre é seletiva, ela joga luz sobre alguns fatos, distorce outros e esquece uns tantos.
Como, então, reconstruir o que realmente aconteceu a partir da noção particular de cada um sobre o evento ? É possível ?

O que Cercas percebe é que rememorar  um fato implica por parte do investigador um posicionamento ativo, não neutro, de selecionar e eleger o que pode ou provavelmente é verdade, de um lado,  e o que são leituras parciais, distorcidas ou omissões, de outro.

Além disso, como somente duas pessoas participaram da cena descrita pelo escritor falangista (ele próprio e o soldado republicano) e a versão de um deles (no caso, a do soldado) não é mais possível ser reconhecida, não há maneira de se obter o sentido último do ato. Ele está perdido para sempre, só se pode tentar reconstruí-lo sabendo-se, de antemão, que a peça final que completaria o quebra-cabeças não será nunca conhecida.

Cercas pensa em desistir da busca, mas o encorajamento por parte de sua namorada (uma pessoa em tudo diferente dele) e de um escritor chileno que ele conhece mais tarde fazem com que ele retorne ao projeto.

A partir daí um outro personagem, muito interessante, entra na narrativa: um ex-combatente catalão que tomou parte na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial. E com ele que Cercas buscará mais uma vez  obter o sentido final do episódio descrito na narrativa de Sánchez Mazas.
Confesso que a parte final do livro, a conversa entre Cercas e este combatente (cujo nome era Antonio Miralles) é de uma sensibilidade e riqueza que a torna a parte mais interessante da obra (bom, pelo menos para mim).

É curioso perceber também a trajetória de Sánchez Mazas após a  vitória das forças que se opunham à república. Ele experimenta rapidamente o desencanto com a política e a vida pública.  Enquanto lutavam contra comunistas, socialistas e anarquistas os slogans e bandeiras da Falange eram de serventia. Após a queda dos republicanos os principais membros da Falange foram alçados aos altos cargos do novo regime, mas sem poder efetivo. Sánchez Mazas mesmo foi ministro de Estado por algum tempo, até perceber que os ideais que levaram sua organização a lutar ao lado de Franco foram postos de lado em prol de um governo puramente pessoal e autoritário. Mazas é removido do cargo poucos meses após a vitória. Por esta época já abandonara completamente a vida pública. Viveu mais alguns anos como escritor, mas nunca mais teve a projeção de outrora. Pouco tempo após sua morte sua obra foi esquecida.

O  livro ainda traz os problemas pessoais e existências vividos por Cercas e Sánchez Mazas. Creio que Cercas  quis demonstrar, e o fez com competência, que por detrás daquelas páginas magnificamente escritas, tanto o autor do livro, como o poeta falangista instigador da narrativa, são pessoas de carne e osso, com problemas em tudo parecido com os nossos (desencanto, insatisfação, perfeccionismo e mesmo falta de dinheiro em alguns momentos).

Sei que há um filme baseado no livro. Cercas mesmo foi convidado a ler o roteiro e aprovar algumas modificações. Confesso que, após ler o livro, ainda não me decidi em ver o filme, mas acho que o farei um dia).





domingo, 23 de junho de 2013

Esquerda e direita trocaram de lado nas recentes manifestações de rua no país.

Poucas coisas são mais odiosas que a tentativa de alguém de usurpar o mérito de outrem ou buscar desqualificar uma iniciativa com adjetivos e rótulos fáceis e desgastados.

É o que observo nas recentes manifestações de rua que ocorrem em várias cidades do país.

Devo dizer que as acho positivas e salutares. É claro que tem alguns que entram nesta pelo oba-oba de maneira pouco refletida.  São aqueles que nunca participam de um evento de tamanha magnitude e pouco sabem sobre o que reivindicar. Dizem e escrevem coisas  em termos genéricos,  críticas fáceis e padronizadas como o "abaixo corrupção", ou o ridículo "ou param a corrupção, ou paramos o Brasil".  São  pessoas que se informam principalmente pela grande mídia e têm dificuldade em formular um pensamento ou mesmo uma idéia próprios.   Sim, eles também estão nas manifestações e em grande número, mas acredito que, se não forem acomodados demais, este momento trará algo de experiência para eles(as).

Há ainda  outros que participam  para dar vazão a sua índole destruidora de vândalos e aproveitadores do anonimato de multidão. São os piores, porque nada contribuem para aumentar a consciência e a participação social. Muito pelo contrário. Eles esvaziam as manifestações afastando pessoas mais interessadas em contribuir para seu país.

Nada disso, entretanto, tira o mérito das reivindicações e da mobilização.

Bom, mas a questão que desejo discutir é o posicionamento de setores da mídia e dos governos em relação as manifestações.

Deixo claro que não vou tentar fazer discurso acadêmico ou prever o que irá acontecer. Não tenho formação acadêmica suficiente  para tal. Na verdade, dada a imprevisibilidade e atualidade dos fatos, duvido que alguém honestamente saiba o que está acontecendo em toda a sua magnitude e conseqüências.

Em primeiro lugar, existe um carona presente nas manifestações.
O carona , como sabemos, é aquele que não paga os custos de chamar, organizar e manifestar-se, mas deseja tirar proveito do esforço alheio.

A grande mídia em boa parte tem feito justamente isso.
De início alheia ou contrária as manifestações, passou a enxergar nelas um meio de atacar politicamente o governo federal. E como o faz ? Como sempre o fez: interpretando os fatos de acordo com seus interesses, alheio as interpretações que os protagonistas principais fazem do evento.
Senão vejamos. As manifestações, até onde sei, nasceram de protestos contra a péssima prestação de um serviço municipal em várias  cidades. Rapidamente evoluiu para outras pautas que, a meu ver, têm como centro uma difusa insatisfação com a classe e o sistema político do país e com a qualidade dos serviços prestados pelo Estado nas três esferas de governo.

Pois bem, a grande mídia e os setores contrários a presidente do país  aproveitam-se do momento para tentar focar o governo federal, ao qual sempre se mostraram hostis. Tentam dar a pauta dos manifestantes interpretações próprias  como um sentimento generalizado de desgosto voltado prioritariamente contra o governo federal. É só ler a grande mídia:

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,em-inferno-astral-dilma-testara-novo-estilo-de-governo-para-salvar-reeleicao,1045912,0.htm.

É falso. É falso porque as palavras de ordem não focam somente este ou aquele nível de governo ou poder. Não, sobra insatisfação para todos os lados (legislativo, executivo e judiciário municipais, estaduais e federais).

Existe, porém, o outro lado. A imprensa que se diz de esquerda e o governo federal, que tentam esvaziar as reivindicações taxando-as de carentes de conteúdo, confusas, inconsistentes e por aí vai.

A meu ver, fazem pior que os chamados setores "conservadores"* da mídia e da política.

Deste outro lado do campo temos uma revista  que possuía até pouco tempo atrás  posições e análises sérias e equilibradas. Mas  o  que seu blog de discussões publicou sobre as manifestações foi decepcionante:

http://socialistamorena.cartacapital.com.br/quem-comanda-os-arruaceiros/

Creio que opiniões, como a do blog acima citado, espelham a situação da chamada esquerda no Brasil. Em prol de um exercício real de poder, ela se acercou de um discurso formalmente democrático, mas  foi buscar aliados nos setores mais atrasados do espectro político.

Alianças com figuras públicas  de duvidosos serviços prestados à nação (Renan Calheiros, Collor de Mello e José Sarney, campeões indiscutíveis do que há de pior em nossa política) se tornaram práticas comuns e desejáveis para a manutenção do poder.
O que a esquerda nunca perdeu, entretanto, foi seu ranço totalitário1. Isto ela até hoje acalenta. Quando no poder desfez-se de boa parte  de seu conteúdo progressista de tempos passados. A forma de ver e exercer a política moldada ao longo do tempo em estratégias jacobinas e bolcheviques, porém, continuam. Quem não é aliado deve ser esmagado .

Ao tentar desqualificar as manifestações percebo o rancor e mesmo o ódio a tudo que escapa ao controle dos arautos "de um mundo melhor".  Ao se darem conta que não foi gente sua que organizou as marchas pelos centros urbanos, a esquerda entra em crise: "como pode ?".
Ao surgem os velhos discursos com roupagem nova. Aqueles que falam que tudo que não vem do partido é ruim, conservador, alienado, inconsistente, ou pior, tem gente mal-intencionada por trás (termo atual para contra-revolucionário).

A esquerda tem uma dificuldade em ser democrática de conteúdo. Pode até se dizer democrática, mas é em  momentos assim que ela se revela.
Enquanto os ditos conservadores da democracia se aproveitam, a esquerda sempre tem dificuldade em exercê-la plenamente. Seu pressuposto, o de que é a portadora única das boas-intenções, a incapacita de ver razoabilidade no discurso e prática alheios. Melhor rotular os discursos de outrem com fáceis etiquetas de identificação: "alienado", "inconseqüente", "arruaceiro", do que fazer o esforço de entendê-los. Cole um etiqueta em alguém ou em um discurso e me desfaço da necessidade de escutar e compreender.

Quem diria que, havendo manifestações por direitos e melhorias sociais, mesmo que com agenda difusa e pouco clara, a dita esquerda se posicionaria contra e seus adversários se mostrariam favoráveis ? O mundo mudou muito mesmo nos últimos trinta anos.

* Se bem que conservadores estão presentes  tanto na oposição quanto na base do executivo federal no Congresso e  na mídia. E só ver de que lado estão Rede Record, José Sarney e o pior do PMDB de um lado e; de outro , Rede Globo, Estadão e DEM. 

Existem diferenças entre totalitarismo e autoritarismo. A esquerda, em geral, é totalitária, isto é, busca o controle total sobre a sociedade e a opinião pública por intermédio de uma constante mobilização ideológica com base em um partido político. Já os sistemas autoritários tendem ao controle social com base na despolitização e apatia social por meio, entre outras coisas, da  eliminação dos partidos como mecanismos de expressão da vontade  popular. Os regimes de exceção latino-americanos seguiram, grosso modo, o modelo de regimes autoritários. Os regimes comunistas e nazi-facistas são exemplos típicos de sistema totalitários. Ver Arendt, Hanna. As Origens do totalitarismo