Benvindos!

A idéia de criar este espaço surgiu aos poucos. Nasceu da necessidade de expandir o grupo de pessoas com as quais me correspondo ou com as quais converso sobre temas de interesse em comum. Desejo que seja um lugar de troca de idéias e informações, mas , sobretudo, de boa conversa, democrática e sem preconceitos. Mais uma vez, benvindos.



sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Livro Gestão como Doença Social

Gestão como Doença Social do sociólogo francês Vincent de Gaulejac é um livro de divulgação. Ele é escrito sob a forma de ensaio, dividido em vários capítulos. A leitura é recomendada para aqueles que procuram entender as origens e dimensões de nossos desconfortos no mundo moderno. Em particular, o livro foca na questão do ambiente de trabalho das corporações, um mundo onde impera normas estritas de conduta (escritas ou não), moralismo baseado na adesão às prescrições  e observâncias de regras sempre impostas de cima para baixo (ainda que de maneira subliminar).  Gaulejac também explora o papel dos discursos motivacionais na formação de uma ambiente esquizofrênico e ameaçador da individualidade.

O autor foge do uso de retórica radical e inflamada para analisar as contradições da vida corporativa. O texto é apresentado no formato de uma exposição de temas claros e livre de jargões. Contudo, Gaulejac longe de simplificar ou tornar o assunto rasteiro, entra agudamente nos meandros dos comportamentos, regras e discursos que fazem o dia-a-dia das grandes empresas.
Embora focado na maior parte do tempo no mundo das corporações privadas, as organizações públicas aparecem em alguns momentos da análise como padecendo das mesmas inadequações. 



Por exemplo, o autor ao investigar as origens dos termos  "gestão"e "gerenciamento",  que sempre vêm acoplados às práticas do mundo das organizações modernas, observa como ambos conceitos se prestam a tantas coisas, hora podendo significar "administração que visa resultados", em outro momento pode  querer dizer "atender os clientes com qualidade", ou ainda "busca de eficácia e eficiência nos processos"; enfim, se prestam a tantos casos que, na verdade, não querem dizer nada. A polissemia dos termos enganam. Aparentemente eles parecem dizer tudo, quando na verdade são pouco significativos. 

Viver em um mundo em que os conceitos são mutáveis para se encaixar em qualquer situação, e as palavras não retratam a realidade vivida, faz com que as experiências dos indivíduos sejam permanentemente desprovidas de mínimas bases de segurança para o comportamento e o agir.  
Como resultado, a sensação de inadequação e a necessidade de reserva imperam em um ambiente no qual o discurso oficial  propaga que a autonomia e a voluntarismo são comportamentos valorizados e premiados. Viver sob estímulos contraditórios leva as pessoas ao desestímulo ou, ainda pior, à doenças psicossomáticas. 
Outra saída, vista pelo autor, como defesa para as incongruências do mundo corporativo moderno é a "adesão de fachada" que, não obstante, também cobra seu preço, tornando as subjetividades fluidas e leva à perda de sentido das ações e comportamentos. 

Reproduzo aqui uma parte do livro que achei particularmente interessante pela fina ironia ao narrar as contradições do discurso gerencial em relação à busca pela qualidade:

"A idéia de qualidade, principalmente quando lhe acrescentamos o termo "total", refere-se a um mundo de perfeição e de excelência que não deixa de lembrar o mundo da pureza. Um mundo sem defeito, no qual cada um realizará sua tarefa perfeitamente. Uma espécie de paraíso antes que o pecado original chegasse a escurecer o horizonte da humanidade. A qualidade remete ao mito do Éden antes da queda do mundo: mundo de reconciliação de todos os contrários; mundo no qual foram erradicados o erro, a falta, a imperfeição e a impureza; mundo ideal onde cada um pode  viver sem limite e sem conflito; mundo fantasmático, em que o desejo é satisfeito e a falta é suprimida. (...)
É por esse motivo que a qualidade suscita, à primeira vista, o consenso é a adesão. É igualmente a razão pela qual ela só pode decepcionar, gerar a desilusão e a frustração. (...), quando o ideal de qualidade não seve mais como máscara para a realidade, subsiste de fato apenas um sistema de prescrição."

Talvez o que o autor deseje demonstrar é que o mundo precisa de mais sentido e menos prescrições;  mais compreensão e menos ditames. 




sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Quando abandonar a leitura de um livro

Tá aí uma questão que incomoda muito a pessoas que têm o hábito de ler.
Quando abandonar a leitura de um livro ? 
Faz sentido se manter apegado a ele mesmo quando não agrada ?
Minha resposta objetiva é : não. Esta minha convicção, porém, não me veio sem um aprendizado que envolveu amadurecimento e reflexão. 



Já abandonei a leitura de pelo menos uma dúzia de livros. Todos os casos ocorreram nos últimos dez anos. Antes eu me obrigava, mesmo com sacrifício de tempo enorme  a terminar um livro (porque a leitura que não agrada leva mais tempo para ser percorrida). Atualmente não faço mais isso. 
É difícil para alguém que gosta de ler, largar um livro pelo meio. Sempre ficamos com aquela sensação de que talvez não tenhamos feito bem. Ou que aquele livro, apesar de tudo, pode ter algo interessante para nos contar ao final. 

Mas vamos reconhecer que há casos e casos. Por exemplo, um livro que comece pedante, sem deixar claro a que veio nas primeira páginas, pode  se tornar muito prazeiroso e interessante logo depois. Quem já não passou por esta experiência ? Digo, não defendo a desistência da leitura logo de cara. A recompensa pode estar só mais um pouco adiante. Muitas vezes vale a pena insistir e não deixar tudo de lado por conta das primeiras sensações. 

Porém, há outros casos em que, por mais interessante que seja o tema, a abordagem equivocada pode fazer a atenção do leitor ser perdida para sempre para uma discussão.  Escrita obscura, pretensamente acadêmica, ou autor disposto a se mostrar intelectualmente superior, são algumas das formas que fazem um leitor colocar um livro de lado e buscar outro na estante.
Certa vez ganhei de presente um livro escrito por um destes autores da moda. Era um inglês, cujo nome sinceramente não me lembro. Acredito ter conseguido chegar até a página setenta. O livro como um todo deveria ter pouco mais de trezentas páginas. Até onde consegui ler, a narrativa era um amontoado de nomes de banda britânicas underground das quais eu nunca ouvira falar; nomes de discos e músicas que eu provavelmente nunca iria ouvir na vida; piadinhas de grupelhos londrinos sobre lugares, pessoas e comidas que só faziam sentido (se é que faziam) para quem viveu a Londres dos anos 70 a partir da lógica daqueles mesmos grupelhos. Enfim, uma total falta de sintonia se estabeleceu entre mim e a narrativa. Minha sensação era de que o autor escrevera para si mesmo e para alguns fews que viveram ou compartilharam com ele aqueles momentos. Ele fazia questão de ressaltar ao leitor, por intermédio da fala de seus personagens, o que ele perdeu por não ter "curtido"os anos setenta na capital inglesa e que  não poderia, nem simbolicamente, fazer parte daquela experiência. Larguei-o sem ter que me dar muitas explicações e fui buscar outro livro. 

Cito outro exemplo de como uma maneira equivocada de lidar com um assunto termina por limitar o debate e a propagação de idéias. Na pós-graduação que fiz anos atrás, tive que escolher um entre três livros para fazer resenha e apresentar à sala. O professor me deixou bem à vontade para a escolha. Pois bem, o primeiro que escolhi, era de um sociólogo francês (quem mandou eu escolher um francês ?). A escrita era tão obscura (os significados e os conceitos não eram claros, e a narrativa era de difícil compreensão pois utilizava casos paroquianamente franceses para realizar deduções pretensamente válidas). Tive que pedir ao professor para trocar de autor. Ele sorriu e concordou, como se já esperasse aquilo. Minha avaliação é a de que o autor que não teve suas idéias e abordagens expostas e debatidas é que saiu perdendo. 


Eu vejo a coisa da seguinte forma: há tantos livros para se ler no mundo que o autor que deseja ter público e ser compreendido deve se pautar pela clareza. Por mais árido que seja o assunto, certamente existe uma forma didática e prazeirosa  de expressá-lo  ao leitor. Ser pouco claro a quem procura conhecer um assunto, ou com ele ter um contato prazeiroso, é um desserviço muito grande. 
Por outro lado, à  medida que vamos lendo, mais rigorosos ficamos quanto a qualidade da escrita. Se vamos despender nosso tempo na leitura de algo,  que esta leitura nos traga boas sensações ou pelo menos o sentimento de que estamos aprendendo algo. Não adianta abordar assuntos espetacularmente importantes e potencialmente interessantes se a forma da escrita desapaixona o leitor em poucas páginas. 


* Logo, não me refiro a literatura barata e sem fundamento como são os  ditos best-sellers em sua imensa maioria, ou livros de auto-ajuda, ou ainda, de gurus da administração. Estes são lixos produzidos por parte da indústria livreira da mesma forma que fast-food o são pela alimentícia.