Realizei pesquisa na internet sobre uma questão que volta e meia me surge: o tema da ausência do hábito de leitura entre nós brasileiros.
O que está por trás desta curiosidade, que não é só minha, é a tentativa de responder a pergunta: afinal, por que o brasileiro lê pouco ? Ou ainda, por que não temos o hábito da leitura ?
Quero dizer logo de cara que não pretendo dar resposta definitiva e pronta a estas perguntas (quem sou eu para fazê-lo ?).
Em primeiro lugar, é bom que se diga, e é um clichê dizê-lo, que o hábito de ler é fundamental para a melhoria da cidadania de qualquer povo e de suas condições de vida. Ao mesmo tempo, é bom ressaltar, ele não é de forma alguma uma panacéia para todos os problemas e nem garantia de um trilhar direto e reto à uma sociedade justa e livre de preconceitos. A última eleição presidencial nos Estados Unidos, turbinada por discursos apriorísticos, e o ressurgimento do racismo e da xenofobia na Europa bem ilustram o que digo. Todas as realidades citadas se caracterizam, frente à nossa, por apresentar estatísticas de leitura bem mais sólidas.
As sociedades árabes, por seu lado, têm uma longa tradição de cultura baseada na escrita e na leitura, e nem por isso se tornaram exemplos a serem seguidos no século XXI em termos de bem-estar, direitos humanos, democracia e tolerância.
Contudo, se é duvidoso que o apego a uma cultura letrada garanta acesso à modernidade, ao respeito e à tolerância; não ter as letras como valor certamente nos leva à sociedades menos condescendentes, mais violentas e ausentes de empatia. Eu não conheço nenhuma sociedade cuja cultura letrada seja pouco valorizada, que consiga garantir qualidade de vida a sua população.
De retorno à nossa realidade, sempre me incomodei com certos discursos e interpretações que apontavam a falta do hábito da leitura como conseqüência direta de governos pouco preocupados com a questão educacional e com a melhoria intelectual e cognitiva de nosso povo. Ou, quando não, pelo preço abusivo dos livros e a baixa renda do brasileiro como fatores limitantes.
Culpa-se as autoridades municipais, estaduais e federais. Culpa-se o legislativo e o executivo também. Esquecemos convenientemente, contudo, que governo nenhum irá empreender esforço em adotar políticas, em qualquer área que seja, sem que ele perceba uma razoável possibilidade de apoio por parte da sociedade na empreitada*.
Desejar que governos se esforcem em executar algo que a sociedade não vê utilidade ou importância, é utopia!
Somente governos totalitários realizam políticas a despeito da opinião pública. Basta lembrar a coletivização forçada das propriedades rurais na URSS nos anos trinta do século passado ou a "Marcha para o Campo" de Pol Pot no Camboja na década de 70 também no século XX.
Fora isso, é sonho imaginar que em regimes democráticos ou mesmo autoritários de frágil apoio social, os governos irão realizar esforço em algo que conta com suporte apenas de uma minoria intelectualizada.
E o fato, por mais infeliz que seja reconhecê-lo, é que a sociedade brasileira não dá, ainda, a devida importância a educação e a leitura. Óbvio que se alguém perguntar na rua para um transeunte se ele(a) acha educação importante, ou se ele(a) acha ler um hábito positivo, sua resposta muito provavelmente será afirmativa. Isto porque educação é tida no discurso como algo positivo. Da mesma forma, existe um quase-consenso verbal de que a leitura é uma prática edificante que traz benefícios para quem lê. Bom, o problema é estes entendimentos só vão até aí. Eles não chegam ao mundo real. Se estes entendimentos fossem um livro, eles terminariam na contracapa.
Dependendo do critério para a definição de quem é leitor ou não, podemos ter pelo menos quase 50% da população definida como não leitora. Pesquisa realizada pelo IBOPE a pedido do Instituto Pró-Livro em 2015, revelou que 56% da população era enquadrada como leitora a partir do critério de ter lido no todo ou em parte um livro nos últimos três meses. A pesquisa também revelou que o brasileiro lê em média 5 livros por ano entre didáticos e não-didáticos, sendo que apenas 2,43 foram lidos no todo e 2,53 em partes. Por fim, a pesquisa apontou que 30% da população não comprou um único livro sequer no ano anterior. O estudo foi comentado no jornal O Estado de São Paulo do dia 18 de maio passado.
Com critérios tão generosos para categorizar quem é leitor ou não, fica claro que estamos mal na fita. Basta apertar um pouquinho os padrões de definição, e estes percentuais irão pender fortemente no sentido de mostrar que NÃO somos um país de leitores.
Mais realista, eu diria, uma pesquisa apresentada no jornal O Globo do dia 31 de março passado trouxe matéria que revela que 70% da população não consultou ou abriu um livro sequer durante todo o ano de 2014.
Alguns insistirão em culpar apenas os governos: estrutura tributária confusa que encarece livros que deveriam ser isentos de tributos; ausência de bibliotecas públicas em quantidade e qualidade, livros caros, baixa renda da população, e por aí vai.
Sem negá-las, acho, porém, que elas refletem uma parte do problema e vem embutidas da visão ideológica de que os governos (no sentido lato da palavra) são os responsáveis pelos nossos males e atrasos. Neste caso, porém, acho que o cerne do problema está na sociedade.
Não há melhor lugar para aprender a gostar de ler do que a sala de casa. O hábito da leitura nasce quase sempre no lar e não em espaços previamente preparados para receber leitores. Tenho a impressão que as bibliotecas públicas de cidades do interior e bairros afastados do centro devem viver vazias a maior parte do tempo por falta de leitores. A biblioteca de meu trabalho, por exemplo, que é no centro de uma capital, vive vazia. Às vezes eu entrava lá e os bibliotecários, que já me conheciam, nem me davam mais atenção. Eu percorria as estantes sozinhos em busca do que queria. Pois bem, esta biblioteca fechou para obras há alguns meses. Devido a escassez de verbas e problemas técnicos referentes a guarda do acervo, ela está fechada até hoje. Ela está há mais de um ano sem abrir. Sem exagero, acho que só eu e os bibliotecários notamos o fato. O que quero dizer é que, não adianta, se não há habito de leitura adquirido em casa, as pessoas não se transformarão em leitores somente porque espaços de leitura foram criados.
Outra coisa, o argumento de que a internet esvaziou as bibliotecas é verdadeiro em parte. Nem tudo que está nos livros e periódicos está na rede. Desta forma, a internet serve como uma fonte primária de consultas. Ele deveria incentivar as pessoas a visitar as bibliotecas em busca de aprofundamento. Entretanto, muitos, por falta de costume de ir as bibliotecas e realizar um corpo-a-corpo com livros e periódicos, contentam-se, convenientemente, em fazer apenas a pesquisa primária.
Quem, que não possua o hábito da leitura, já não ouviu que ler é chato, que dá sono, ou que dá dor de cabeça ? Ou ainda, que ler faz mal pois amolece o cérebro e confunde o raciocínio ?** Vamos ser sinceros, o brasileiro tem muito preconceito contra quem lê e contra a leitura em si. Pessoas que lêem são vistas como estranhas, desinteressantes e maçantes. O que é curioso neste raciocínio (se que dá para chamar de raciocínio) é que ele inverte radicalmente os valores. Uma pessoa que lê é considera menos interessante do que a não-leitora. Então vejamos, quer dizer que uma pessoa que tem em seu repertório não mais do quatro ou cinco assuntos de seu cotidiano (futebol, loteria, cerveja, trabalho e talvez um interesse ou passatempo) é mais interessante do que outra que entrou em contato com diversos assuntos e com variados enfoques ? Ora, ler é conhecer, e quanto mais a pessoa conhece, mais ela tem para oferecer a si e aos demais. Nós invertemos, entretanto, o argumento para se acomodar ao nosso preconceito contrário ao hábito de ler.
Outro fato preocupante, a falta da leitura encontra-se em todas as classes sociais. Não é verdade que pessoas com alta renda possuam o gosto de ler em percentuais significativamente maiores do que aqueles que de origem humilde. Não encontrei dados sobre renda e hábito de leitura em nenhuma pesquisa, mas existe uma forma indireta de medí-la: entre as pessoas com nível superior completo, e que apesar de todos os avanços no acesso a universidade, ainda é basicamente formado por pessoas de renda mais alta, 57% afirmam gostar de ler***. O que, de cara, serve para rechaçar o argumento do preço dos livros como empecilho para que se adquira o hábito de ler. A mediocridade é bem distribuída entre as classes sociais. Nossa "elite" econômica, gosta de luxo, mas não de intelecto.
Por fim, mas muito longe de querer esgotar tão vasto assunto, há também a questão da ausência de uma visão da leitura como algo de valor intrínseco. É mais ou menos assim: "leio este livro, e daí ? o que faço depois com o que li ?". Se quisermos ser tão utilitaristas, está pergunta, na verdade, pode ser feita sobre quase tudo. "Paguei ingresso. Assisti um show que acabou. E agora, o que faço com o que ouvi ?". "Vi um filme no cinema. Pra que me servirá ?"
De minha parte acredito que a leitura é um meio de experimentar outras vivências. É conhecer sem ter que pagar pelos custos de adquirir o conhecimento. É se identificar com pessoas que nunca conhecerei pessoalmente. É uma maneira de formar uma comunidade de espíritos. Basta ?
Para acessar a pesquisa completa do Instituto Pró-Livros/IBOPE em 2016:
http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_-_2015.pdf
* Um exemplo muito citado diz respeito ao maior problema ambiental do Brasil no momento, a falta de coleta e tratamento dos esgotos residências e industriais. Mais de 50% das residências e industrias não têm o seu esgoto coletado. Apenas 40% do esgoto no Brasil é tratado. Por que isto ocorre ? Parte porque as prefeituras não querem se responsabilizar pela construção de estruturas de coleta e de tratamento. As obras trazem muitos transtornos para as cidades. Dificultam a vida da população enquanto executadas. Por outro lado, por serem subterrâneas em sua maioria, as obras não trazem dividendos eleitorais. A população remunerará mal em termos políticos o prefeito que tentar viabilizar a coleta e tratamento de esgotos em sua cidade. Logo, nenhuma administração local deseja fazê-las. Parece óbvio, não é ?
** Nunca esqueço de citar o exemplo de Florestan Fernandes, um dos mais importantes sociólogos brasileiros. Ele, que veio de classe social humilde, cedo se interessou pela leitura. É conhecido o fato de ele teve que enfrentar o preconceito de seus amigos e da própria mãe quanto ao seu hábito de ler.
*** Retratos da Leitura no Brasil, 4 edição. Instituto Pró-Livros/IBOPE, 2016. A pesquisa meritória pelo aspecto de levantar dados sobre uma questão em que tradicionalmente temos poucas informações, carece de melhor qualificação sobre o que se entende sobre ser leitor ou não. Ler um livro a cada três meses, no todo ou em parte, não faz de ninguém um leitor. A leitura de 4 livros por ano está abaixo da média nacional que é de 5 livros por ano/per capita. Por outro, o estudo não adentrou na questão qualitativa da leitura em momento nenhum. Alguém dizer que gosta de ler e citar a Bíblia como leitura, ou que leu 4 livros por ano, sem entrar na discussão de mérito sobre o que foi lido, pouca ajuda na elaboração de políticas públicas para o setor.