Benvindos!

A idéia de criar este espaço surgiu aos poucos. Nasceu da necessidade de expandir o grupo de pessoas com as quais me correspondo ou com as quais converso sobre temas de interesse em comum. Desejo que seja um lugar de troca de idéias e informações, mas , sobretudo, de boa conversa, democrática e sem preconceitos. Mais uma vez, benvindos.



domingo, 29 de novembro de 2015

Os Filhos da Rua Arbat

Terminei de ler Os Filhos da Rua Arbat de Anatoli Ribakov. Lembro-me que tomei conhecimento da obra por volta do início dos anos 90. Fiquei interessado na leitura do livro. Muito interessado. Acontece, porém, que você se envolve com as leituras da faculdade. Aí já viu, né ? Começa a ver duzentas mil coisas interessantes  de se ler e conhecer ao mesmo tempo e, sem perceber,  vai deixando  de lado umas tantas outras leituras. 

Pois foi o que aconteceu com Os Filhos da Rua Arbat em relação a mim.  Acabei lendo o livro por meio de um amigo que o emprestou para mim. 

Salvo melhor juízo, a primeira edição da obra aqui no Brasil é de 1987. Seu lançamento entre nós é, portanto, contemporâneo a política de abertura na União Soviética iniciada por Gorbachev. 

A história gira em torno de rapazes e moças que moram na Rua Arbat ou em suas imediações. Destacam-se os personagens Sacha Pankratov, Vária, Iura Charok, além do próprio Stalin.
O último, apesar de não-ficcional, é profundamente retratado pelo autor por meio de longos solilóquios sobre assuntos políticos e por intermédio de conversas com outros personagens reais ou fictícios.



Sacha é um rapaz idealista e muito confiante em si mesmo. Membro do Komsomol, ou juventude comunista, ele é uma pessoa devotada ao sistema soviético e à Stalin como líder da URSS. 
Nada disso impedirá, contudo, que ele seja punido pelo sistema que acredita. A partir de um comentário banal de um conhecido seu no Instituto Técnico de Moscou onde estuda, Sacha começa a  trilhar o caminho que leva da desconfiança ao exílio na Sibéria. 
Rybakov faz a narrativa da vida de Sacha como exemplo claro de como um regime totalitário esmaga a individualidade e as expectativas de uma pessoa. 
Sacha ouve um comentário irônico de um membro do instituto a respeito de Stalin, mas decide não lhe dar atenção. Ele chega mesmo a esquecer o incidente por reputá-lo sem importância. Este comportamento é, aos olhos das autoridades que irão perseguí-lo e encarcerá-lo, uma clara demonstração de deslealdade com o regime. 
Sacha é preso sem suspeitar o porquê. Na prisão, frente ao seu interrogador, um jovem como ele, surge  uma das inequívocas características dos sistemas totalitários: a impotência do indivíduo frente ao poder do Estado. Sacha não sabe porque está ali. Ele não sabe do que o acusam.  O interrogador, entretanto, tem o dever de extrair-lhe uma confissão e age de maneira a inculcar no prisioneiro a dúvida da culpa. 
Sacha volta para cela atormentado pelo pensamento de que pôde, sem perceber, ter agido contra o regime que acredita. Passa noites em claro refazendo diálogos, procurando o momento em que agiu de maneira desleal. Um tormento psicológico, sem dúvida. 

Outra característica patente do sistemas totalitários que surge na narrativa é a sua desumanização. Aquilo que sentimos muitas vezes no mundo corporativo. Todos, desde os policiais que vão à casa de Sacha prendê-lo, passando pelo interrogador e chegando àqueles que devem recebe-lo no exílio, todos sem exceção aparecem como meras engrenagens de uma máquina que opera por um controle que eles não podem ver, mas que temem. Não agem tanto por apego a valores ou ao teor ideológico do poder que representam, mas por medo de falharem e serem também acusados de  traidores. 

Iura Charok, é em todos os sentidos a antítese de Sacha. Eles se conhecem desde pequenos. Mas enquanto Sacha vem de setores proletários da sociedade russa, Charok vem da pequena burguesia . Sacha crê no sistema soviético. Charok não acredita em nada, salvo em sempre aproveitar  as chances de maneira favorável para si. Ele procura esconder sua origem social, demonstra distanciamento e pouco apego em relação ao irmão mais velho e se utiliza de Lena, uma garota por ele apaixonada, para expandir seus contatos sociais em proveito próprio. 

Dadas as manifestas peculiaridades de um sistema arquitetado sobre delações e idiossincrasias, Charok tem amplas vantagens sobre Sacha. Aquele não tem as barreiras de caráter que este  possui. Logo, pode dar vazão a qualquer métodos que achar necessário para adquirir poder e status.
Nada  diferente da vida dentro de uma corporação nos dias de hoje, onde agradar os dirigentes e dizer só o que lhes interessa  se tornou meio de ascenção profissional. 

Bem, voltando ao livro, temos Vária, uma garota comum como tantas outras.  Ela é, ao mesmo tempo, alienada do contexto político de sua época e uma pessoa sensível aos problemas que sucedem aos outros. Ao longo da narrativa ela vai se tornando uma mulher madura. Passa por momentos e relações complicadas, mas ao fim (re)descobre que sempre foi apaixonada por Sacha. Foi a única dos membros da turma da Arbat que não o abandonou  por completo depois que ele partiu para o exílio. Ela também não  procurou julgá-lo ou entender o motivo de sua prisão, mas apenas apoiá-lo. Ficou ao lado da mãe do rapaz quando todos os demais já haviam se distânciado por conta dos afazeres da vida. 

Stalin é retratado como um sujeito imbuído tanto de um projeto pessoal de poder, que ele procura justificar com a defesa da linha leninista do partido comunista, quanto como uma pessoa com sérios problemas de autoestima.  Stalin é  um indivíduo que desconfia de todos e torna a mais leve contrariedade como afronta pessoal. No livro ele aparece como uma pessoa ressentida contra os intelectuais do partido comunista. Ele obra dia e noite para eliminá-los, taxando-os de inúteis ou contra-revolucionários. 
Ao mesmo tempo, ele deseja eliminar todos os seus velhos companheiros de partido que o conheceram à época em que era apenas mais um militante do partido bolchevista. Stalin deseja substituí-los por membros mais novos, alçados ao poder por ele. Ele busca justificar este ponto de vista com a necessidade de trazer gente de  fôlego e ânimo novo para as tarefas de edificação do primeiro Estado Socialista do mundo. Ele sabe, entretanto, que o que ele profundamente deseja é o poder absoluto, estruturado  sobre novos quadros dirigente, com pessoas gratas pessoalmente a ele. 
Falta-lhe, contudo, uma justificativa para lançar a campanha de perseguição aos antigos quadros do partido. Stalin precisa de um motivo. Ele vai aos poucos construindo um. Ele vai se antagonizando intencionalmente contra um velho amigo de partido,  Serguei Kirov, que é um político muito popular. Apesar de Kirov ser um partidário seu, Stalin irá usar a morte dele como fundamento para atacar seus adversários. O livro apresenta o processo de antagonização de ambos, e como Stalin decide pela morte do antigo companheiro de forma a lhe dar os motivos necessários para culpar seus inimigos. O livro encerra com a notícia da morte de Kirov.  Historicamente aquele momento foi o início da fase do Grande Expurgo lançado pelo Kremlin. Iniciado em final de 1934, o Grande Expurgo  irá se prolongar até às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial na Europa, e vitimou milhares, senão milhões de pessoas. 

O livro é recomendadíssimo para aqueles que desejam entender melhor uma período importante do século passado em termos de conseqüências de longo alcance. Ainda que possamos fazer uma crítica aqui outra ali pela forma como Kirov, em particular, é retratado na obra, a leitura é prazeirosa e prolífica.